Vidas perdidas
O Belvedere da estrada do Contorno (da Rio-Petrópolis), foto reproduzida por Rouen |
Julia acreditou na
promessa. Em breve voltaria aquele lugar. Arrumou os cabelos no alto da cabeça,
prendeu-os com a presilha espanhola. Sua face resplandecia, era chegada a hora.
Calçou as luvas, pegou a mala e partiu deixando para trás o aroma de jasmim.
Leopoldo aguardava sua
patroa, percebeu que nem o pó de arroz conseguia disfarçar as profundas
olheiras, o vestido parecia engolê-la, as luvas estavam amareladas, os cabelos
mostravam na fronte os fios de marfim. Pegou as velhas malas e depositou
cuidadosamente no fundo do automóvel.
O carro ganhava velocidade
pelo caminho arborizado, serpenteava a colina. A cada curva aumentava o enjoo. Aquelas náuseas matutinas
que a assombrara por longas manhas parecia retornava à medida que o veículo
vencia a estrada.
Tinha certeza que tudo
daria certo, afinal não completara 40 anos, sabia que tinha muito por viver. Plínio certamente acreditava na cura,
mas do que ela. Sentia-se culpada por diversas vezes queria que a morte a
levasse. Mas, isso era um sentimento do passado, sepultado desde que o seu
amado voltara definitivamente para ela.
Assim que o carro começou a
descer a Rio-Petrópolis, Leopoldo viu pelo retrovisor as feições de Julinha
mudarem. A cara não escondia o desconforto acentuado pelas curvas da
estrada. Mantinha toda cautela possível,
tinha afeição paternal por ela. Ainda lembra a primeira vez que a viu. De vestido
rosa com babados, cabelos negros e longos e olhos vivazes.
Era motorista da família
por muito tempo. Ali criou seus filhos. Os patrões eram justos, mas não tinham
liberdade com os criados. Teve uma época que pensou ir embora, afinal, não
aceitou os modos que Dr. Gonçalves tratou seu filho. Não quero um pé rapado,
cortejando minha filha. O ódio ferveu lhe as veias. Desejou a morte de seu
patrão.
Desde aquele dia Plínio foi
para capital. Entrou no exército. Foi voluntário na guerra de Suez. E por lá
ficou cinco anos. Depois seguiu carreira nas forças armadas. Constitui família.
Durante muito tempo pai e filho pouco conviveram. As poucas notícias que
chegavam eram cartas e alguns cartões em datas comemorativas.
Julia cresceu sozinha, uma
moça triste. Fez universidade Católica Petropolitana fez parte da primeira
turma de letras. Escrevia algumas criticas literárias para o jornal da região,
fazia traduções de livros para biblioteca das moças. Recusou todas as propostas
de casamento que surgiram, quando ela completou trinta anos o pai faleceu. O tormento
acabou. Ficou mais livre, passou a ter alguns amigos, mas na maioria do tempo
vivia mergulhada nos livros. Não falava muito. Mas todos os dias religiosamente
verificava a correspondência.
O carro estacionou no pátio
do hospital, Plínio aguardava no hall de
entrada. Pai e filho se cumprimentaram com um
aceso de mão. Julia desceu do carro com cautela queria manter uma força
que não tinha. Estava exausta. Plínio estava
mais bonito do que nunca. Era o homem de sua vida.
Assim que os dois entraram
no hospital, uma lágrima verteu dos olhos do velho homem. Lamentou por eles.
Tanto amor sublimado, castrado por preconceito social. Sabia que perdera o
filho a vinte anos atrás, não o apoiou, não fora um bom pai. Como podia falar
mal de seu ex-patrão, porque fora fraco e covarde. Hoje Julia é uma sombra do
que fora, começa o tratamento de quimo. Pedira a Deus que a poupasse. Queria
que os dois ficassem juntos.
O velho motorista naquele
dia não sabia que veria Julia pela última vez. Ela não resistiu ao tratamento.
Seu filho ficou com ela todo aquele tempo. Tempos depois foi à mãe de Julia que
veio a morrer. Para seu desespero, todos os bens ficaram para o governo. Hoje
mora num quarto de asilo, às vezes os netos vem lhe visitar.
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